Ouvir sua voz gritar o meu nome no diminutivo me dava taquicardia. Na terceira chamada, com o coração aos galopes, eu ainda aguardava o consentimento (a contragosto) dos meus avós. Eu aparecia na porta cheia de laços no cabelo, enchendo o seu sorriso de adoração. Da calçada, ele arremessava o embrulho de papel de bodega que atravessava o jardim rodopiando, quase a despetalar os cachos de hortênsias da vovó. Ao tocar o chão da varanda, pipocava um punhado de balas em todas as direções, e eu arrastava meus joelhos pelo piso encerado catando uma a uma para a saia do vestido.
Sentia
vontade de descer os degraus correndo, enfiar meus pesinhos nas grades do
portão, e me pendurar no pescoço do meu pai. Mas sentia vergonha de
demonstrar-lhe afeto sob a vigília de meus avós que, entre cochichos, se
acotovelavam atrás das venezianas. Restringia-me a um meio sorriso de lábios
cerrados, com uma das mãos a prender as balas no vestido, e a outra, num aceno
acanhado de despedida. Ele me lançava um olhar saudoso e eu escapulia para
dentro de casa com a sensação de que havia feito algo proibido.
Essa
cena repetiu-se por semanas, meses, talvez. O tempo de uma criança é uma
fantasia que o próprio tempo encarrega-se de tornar enigmático. Aos oito anos,
eu era a mais velha da prole de quatro filhas e assistia ao processo delicado
de uma separação litigiosa, da qual eu tinha mais entendimento e menos
impassibilidade que minhas irmãs mais novas. Meu pai era alcoólatra, numa época
em que o alcoolismo estava longe de ser visto e tratado como “doença”.
O
álcool furtou-lhe a dignidade, mas, não antes de lhe tirar a mulher, as filhas
e o emprego. Durante algum tempo, perdido nos desvarios da ebriedade, vagueou
pelas ruas do antigo bairro, choramingando a dor-de-cotovelo e a saudade das
filhas. Quando não mais lhe restavam esperanças de reaver o lar, regressou à terra
natal, de onde saíra há quase duas décadas, e para onde jamais cogitou voltar. Ao entrar no ônibus, rumo à fazenda Egito, na
pequena cidade de Porteiras*, carregando uma mala tão mais leve que o seu
coração, deixava para trás os sonhos de juventude e tudo o que ainda lhe dava algum
sentido à vida. Aos trinta e três anos, a sentença: estava condenado à solidão
pelos próximos, quase, quarenta anos.
Meus
avós paternos já haviam partido. Ao menos, encontrou viva, Pureza, a preta
velha e humilde cozinheira que o viu crescer. Pureza tinha ouvidos generosos, atentos
às suas lamúrias, e sabedoria para aplicar-lhe conselhos valiosos de paciência
e resignação, até o dia em que dormiu e não mais acordou. Restaram os irmãos de
meu pai que moravam na fazenda e redondeza. Estes, porém, tinham mulher e
filhos, além dos próprios fardos e preocupações. Isolado, meu pai ocupou-se com
o nada. Preencheu seus dias com o ócio e a mente com as lembranças do passado.
Por sorte, um dia largou a bebida. Mas, resistindo ao vício que o fazia
esquecer a realidade, a sorrateira depressão o abraçou.
Quando
eu já era uma mocinha, sete anos após o último arremesso de balas por sobre a
mureta da casa da minha avó, o carteiro nos trouxe notícias suas. Nossos nomes separados
por vírgulas, na ordem da mais velha à caçula, faziam a introdução. A carta
expressava seu amor e saudade, e relatava o ultimato dos médicos para a possibilidade
de cura de sua depressão: o reencontro com as filhas.
Um
mês depois, aproximadamente, viajamos para a fazenda. Eu estava com quinze anos
e, antes de minhas irmãs, o reconheci à distância pela silhueta de seu corpo
sob o céu estrelado daquela noite. Foi um reencontro emocionante. Após meia
hora de prosa, ele abriu a carteira e mostrou a nossa fotografia, tão amarelada
quanto o meu sorriso de lábios apertados, pela falta de um dente de leite.
Espelhando na outra aba, a foto de nossa mãe com sua expressão meiga, ao lado do
pequeno calendário do Padre Cícero, o “Padim Ciço”, de quem é devoto.
Passamos
dias felizes, revendo a família paterna, tomando leite mugido e chupando
laranjas tiradas do pé. Mas, no dia da despedida, papai chorou todo o trajeto
até a rodoviária. Espremidas na janela do ônibus, acenamos até perdê-lo de
vista. Foi um triste adeus. Nos anos seguintes, fomos ao seu encontro nas férias escolares.
Depois
de adultas, nossas idas à fazenda passaram a ser menos frequentes. Encontrávamos,
com o passar dos anos, um homem mais velho que a sua idade cronológica, como se
o tempo lhe pesasse em dobro. A cada partida, a tristeza foi dando lugar à
resignação. Não é difícil acostumar-se com a delonga do próximo encontro quando
se passa a vida esperando.
Envolvidas
com nossas próprias vidas e os afazeres profissionais e domésticos, cometemos a
falta de deixar passar quatro anos. Assim, num estalar de dedos. Quatro anos
sem nenhuma visita. Próximo à Páscoa deste ano (2011), eu, minhas irmãs e minha
mãe tomávamos um café numa tarde de sábado, e fazíamos uma reflexão a respeito.
Conjeturávamos a possibilidade de trazê-lo para passar uns dias conosco em
Fortaleza, se ele aceitasse. Tão acostumado com o seu habitat, não seria
improvável recusar o passeio à Capital. Mas, na certeza de que ele, no mínimo,
iria ficar feliz em nos ver, planejamos a viagem. A essa altura ele devia
pensar que nós o havíamos esquecido.
Unidos
no propósito, no dia marcado, seguimos na companhia dos maridos e de nossa mãe
que disponibilizou a própria casa para hospedá-lo, na hipótese de ele vir
conosco. Na sexta-feira da paixão já acordamos na pousada, em Brejo Santo, e pegamos
o rumo da fazenda, a alguns quilômetros dali. Com dificuldade, transpomos as crateras
que as águas pluviais causaram ao solo, no último inverno, e atingimos o cume da
estradinha de barro, avistando o antigo casarão lá na baixada. Ao barulho dos
motores dos carros, os moradores do povoado corriam para as portas de suas modestas
casas, curiosos. Nos arredores, o casebre de taipa, a antiga morada de tia
Pureza (como eu costumava chamá-la), estava em ruínas.
Encontramos
nosso pai abatido, sentadinho no alpendre. Ao nos ver, descrente, ensaiou um
sorriso confuso. Estaríamos ali para mais um breve consolo, ínfimo, para uma
vida inteira de solidão? – li em seus pensamentos. Convidados à ceia de páscoa,
chocou-nos o fato de meu pai não poder comer à mesa, na companhia de todos. Nem
mesmo naquele dia especial? Alguém disse que ele sujava a toalha, apontando para
o seu lugar de fazer as refeições. Peguei o meu prato e fui fazer-lhe companhia
na velha mesa fora da casa. Meu pai comia sozinho todos os dias. E, excluso,
ele não tinha nenhuma motivação afetiva, nada que lhe estimulasse à busca de um
sentido maior à vida. Estava entregue a própria sorte.
Quando
cada dia na vida de um homem torna-se um fardo pesado, a morte deve ser sua
única esperança. Bastou-nos algumas horas para perceber o estado de quase
abandono que se encontrava o nosso pai. Minha sobrinha de onze anos abraçou-se
à mãe e chorou, ao adentrar no cômodo onde o avô passava as noites e a maior
parte do dia. Uma masmorra. E, no instante decisivo, à pergunta cortante sobre o
que ele achava de passar uns dias conosco, em Fortaleza, ele ergueu um olhar
suplicante seguido de um “quero”, sem hesitação. Enfim, ele queria ir conosco. Certamente,
o surpreendemos. E fomos surpreendidas.
Segurei
meu pai pelos ombros, olhando-o nos olhos, e lhe afirmei que voltaríamos para
apanhá-lo na manhã seguinte. No intuito de não deixar a mínima dúvida, antes de
entrar no carro, reiterei a promessa. Minhas palavras o fizeram esboçar leve
sorriso. Saímos emocionadas e fomos comer uma pizza na praça de Brejo Santo.
Não conseguíamos parar de falar sobre isso. Ali, tomamos uma decisão. Agora,
nosso objetivo era levá-lo definitivamente para o nosso cuidado e convívio.
O
dia amanheceu, no sertão do Cariri, ensolarado. Naquela bela manhã, ao
chegarmos à fazenda, ele já estava arrumadinho com os seus trapinhos de roupa e
meia dúzia de mudas na mala. Despediu-se de todos, como se fosse apenas para o
seu aposento nos fundos do casarão. A algumas horas de estrada, contei-lhe que
ele não estava indo passar apenas alguns dias conosco. Entusiástica,
aplicando-lhe uma injeção de ânimo, na veia, disse-lhe que era para sempre. Ele
repetiu quase soletrando: “para sempre...”. Perguntei em seguida se ele iria
sentir saudades da fazenda. Ele tirou o boné, passou a mão pela cabeça e,
colocando o chapéu, disse com os olhos fechados, duas palavras: “um alívio”.
Depois
de um dia inteiro de viagem, chegamos à Fortaleza quando a cidade preparava-se
pra dormir. As filhas gêmeas o esperavam em festa com uma recepção de
boas-vindas emocionante. E, para encerrar a noite, uma cama fofinha, com
fronhas e lençol limpinho. Um contraste com o quarto da fazenda. No início,
enfrentamos muitas dificuldades de adaptação. Acostumado à vida no campo, meu
pai desaprendeu costumes básicos da vida civilizada. Mas, a sua vontade de
ficar, e a nossa paciência e perseverança o fizeram aprender mais rápido do que
acreditávamos ser possível.
Hoje, vive em companhia da mulher que sempre amou por toda a vida. E, embora, minha mãe o tenha acolhido como um irmão, chama-o de “meu marido”, só pra lhe provocar um sorriso. Contratamos uma auxiliar de enfermagem que
zela por sua boa alimentação e higiene pessoal. Aos sábados, como já era
costume, nossa família se reúne. Agora, o novo membro é cercado de mimos. Ainda
é estranho dizer “papai, papai!”. Papai era uma palavra que eu não costumava
pronunciar com tanta frequência.
Esta
narrativa é exemplo de que nunca devemos desistir. Dias melhores sempre virão,
mesmo que nos pareça impossível. O destino cravou na vida do meu pai, uma
lacuna de trinta e sete anos. Um tempo infindável de páginas em branco, sem
família, sem amor, sem história. Selamos um final feliz, graças a Deus e, especialmente,
ao apoio incondicional da dona Lêda. Essa mulher de alma grande que me
presenteou a vida e com quem tenho aprendido grandes lições. Ouvi de minha mãe:
“ele me deu quatro filhas maravilhosas, e eu o privei do convívio e do carinho
dessas filhas. O mínimo que posso fazer é dividir com ele os tesouros que ele
me deu”.
*Porteiras, fica no interior do Ceará,
microrregião do Cariri.
Para conhecer um pouco mais desta
história, leia a crônica: “Dona Lêda e Seus Dois Maridos” - http://crisgrangeiro.blogspot.com/2009/03/dona-leda-e-seus-dois-maridos-d-ona.html