Desde a pré-adolescência, eu costumava passar horas escrevendo em diários ou criando poemas. Chegada à fase adulta, devido à habilidade em escrever, pessoas em circunstâncias conflituosas me requisitavam cartas, mais amiúde, familiares e amigas íntimas. Depois, as amigas das amigas, e outras que eu sequer tinha a menor proximidade, buscavam em minhas cartas uma esperança para os seus dramas. Eu as ouvia com atenção e escrevia o que me pediam, passando-me por elas, porém, utilizando uma abordagem conciliadora que facilitava a compreensão e o apaziguamento. Escrevi para dois juízes (que reviram processos já homologados), para uma mãe alheia à gravidez da filha solteira, um pai ausente, outro que não honrava a pensão alimentícia, um marido indiferente, uma esposa que abandonou o lar, etc., etc.. Pode até parecer engraçado, mas, as “encomendas” tornaram-se uma coisa comum. De contra partida, fui presenteada em muitas ocasiões, por relatos de meus “fregueses” de bom êxito, objetivos alcançados. Isso bastava para sentir-me recompensada pelo o favor prestado. Uma tarefa que eu não encarava como sacrifício, mas como desafio. O doce desafio de escrever e persuadir. Hoje, as “encomendas” são raras, mas o prazer pela escrita me acompanha. Dedico a essa tarefa, horas de minhas noites e fins-de-semana. Sempre tive a sensação de que, em algum momento, a literatura estaria mais presente em minha vida. Como uma sina. Talvez, por isso, eu tenha cursado jornalismo, mesmo atuando na publicidade. Enfim, começo a postar aqui os meus textos. Já era hora. Vou deixar fluir um pouco de mim, o meu lado oculto. Sem nenhuma pretensão, quero apenas escrever, extravasar os meus pensamentos. Tenho uma mente em erupção.



Dona Lêda é uma mulher de um metro e meio de estatura. Seus olhos grandes denotam “buracos de fechadura” por onde se espia sua boa alma. Nos lábios, o sorriso perpetuado de quem parece nunca ter tragado um só bocado de tristeza. Os negros cabelos são prova de sua vaidade, pintados a rigor antes que um só fio branco lhe constranja. Já fez plástica nos peitos, esticou os couros da barriga, tudo para abrandar os 61 anos, incompatíveis ao eterno “espírito adolescente”. Quer ver dona Lêda derretida? Duvide de sua idade, e terá um cantin em seu coração para sempre!



Aos dezesseis anos, impressionou-se por um rapaz de topete e costeleta elvispresliana que lhe comprou toda a cartela da rifa do concurso “Miss Liceu”. Era um homem pequeno, entroncadinho, que andava a passos curtos bem avexados, com braços levemente flexionados e punhos serrados como um boxeador. Usava uma cabeleira preta, reluzente de brilhantina, e tinha um par de olhos azuis. Cheirava a Pós-Barba Bozzano e não variava o trio capanga, cinto e sapato brancos, que contrastavam com a camisa escura de mangas compridas, dobradas abaixo do cotovelo.


Arrebatado de paixão, rendido pelos grandes olhos e boca carnuda de Ledinha, sem falar nas panturrilhas torneadas abaixo da barra azul-marinho da saia colegial, propôs-lhe com o típico sotaque das bandas do Cariri e a gaguice peculiar: “gostei de ti, que-quero casar contigo”. Uma semana depois, fugiu com a moça alheia e escondeu-a na casa de uma tia.


Ao raiar do dia, bateu palmas no portão do número 498 da Gustavo Sampaio e, da calçada, berrou ao homem que pigarreava atrás da veneziana: “go-gostei de Lêda, robei Lê-lêda, que-quero casar com Lêda”. O que o seu Walter respondeu àquele desconhecido, todo o quarteirão ouviu e estremeceu naquela manhã de 25 de dezembro. Mas, uma donzela não podia regressar ao lar após pernoitar n’outro recinto, mesmo virgem. Tiveram que casar.


O dito era um ébrio bem intencionado, mas de pouco juízo. Além do alcoolismo, queimava duas carteiras de Hollywood por dia. Nem todo o amor roxo que sentia por Ledinha, poupou-a da vida conturbada. E não bastasse o vício, tinha também o ciúme doentio. Para arrematar, deu-lhe três buchos encarrilhados que renderam quatro meninas esgoeladas. Na última barrigada, até fez promessa por um filho macho. E quase surtou Ledinha quando, contrariado, cortou ele mesmo no tronco, os cachos da gorduchinha, pra pelo menos aparentar.


Passados oito anos, cansada, Dona Lêda pediu arrego à família e deu as contas ao marido louco de pedra. Jot'ele-gê, como chama-o Ledinha pelas inicias “JLG”, jamais amou outra mulher. Voltou literalmente pra roça brejo-santense e mantém até hoje, pra quem quiser ver, a fotografia de Ledinha na carteira, sorrindo com seus lábios carnudos, ao lado do calendário de bolso de “padim-ciço”, de quem é devoto.


Mas, foi no segundo casamento que Lêda conheceu o amor e teve, também, a sua maior desilusão. Ainda era bem jovem, na flor de seus vinte e seis anos, quando conheceu o Francisc’Airton, numa corrida de táxi. Caíto, para os íntimos, ou simplesmente “Bem”, para Ledinha, era um cearense que falava um carioquês puxado, por causa de umas férias de janeiro no Rio. Logo, Ledinha e o seu “kit”, o “kit-lasca” (para qualquer pretendente), dividiam a mesma casa com Caíto. A mais nova da escadinha ainda usava bico e comia barro.


O Bem usava umas camisas de javanesa e sorria somente de um lado da boca, o direito, com sua arcada dentária avantajada. Nas noites de sexta-feira, colocava o LP do Júlio Iglesias e dublava “ou me queres ou me deixas...”. Ledinha arriava os quatro pneus e sobressalente! E ele se sentia o próprio “Rulio”. Quer ver todos os caninos, presas e molares (inclusive os sisos) de Caíto, com o seu sorriso diagonal? Diga-lhe que ele é a cara do cantor espanhol (e ganhe um cantin em seu coração para sempre).


Pois bem, com o copo de Rum Montila numa mão (a esquerda), e o cigarro “Chanceler, o fino que satisfaz”, na outra, ele repetia um cacoete, uma moganga, até o término da 3ª dose. Depois de dublar três vezes, a primeira faixa do lado “A”, “Devaneios”, escapulia de fininho. Não antes de chiringar seis gotas de “Toque de Amor”, pensando no slogan da Avon: “a gente conversa, a gente se entende” (depois).


A radiola nas alturas abafava o ronco do Dogde de Caíto, e quando Ledinha dava fé, só restavam o cheiro do “Toque” no meio da casa e a fumaça do motor queimando óleo na rua. Fumando numa quenga e com o coração despedaçado, choramingava até quase o amanhecer, quando o Bem batia em sua porta com um sorriso, aquele diagonal, a moganga, seguidos da velha frase carregada de um carioquês exagerado: “Liêda, vieja beim...”. Ao discurso introdutório de Ledinha, floreado de perguntas “basiquetes” do tipo adonde, com quem e por quê (desgraçado), ele engasgava no “Liêda, vieja beim...”, repetidos a cada pausa do interrogatório. E, de um instante pra outro, como se “puxassem-lhe a tomada”, ele capotava na cama de Cavalo de Aço e tudo.


Morrendo de ódio, Lêda amava loucamente o infeliz. Tirava-lhe os sapatos, desabotoava a camisa cheirando agora a “Topaze”, e ainda ajeitava um travesseiro sob a cabeça do tratante. Pra terminar o ritual, arrancava de suas calças a chave do carro e ia catar fivelas de cabelo e bilhetinhos que a outra deixava só pra azedar o leite. Pois então, num estalar de dedos, passaram-se 25 anos. De lucro, mais duas paridelas que completaram sua prole. Desta vez, salvou-se um par de testículos legítimos.


Tempos depois, quando o dito cujo já estava “sem mel, nem cabaça”, a ex-amante infernizadeira, de tanto ouvir falar da “bondosidade” de Ledinha, se invocou e foi conferir. Bateu palmas em sua porta com o atrevimento autêntico de uma cunhã encomendada! Ledinha, com toda espiritualidade, arreganhou um sorriso seguido de um “pois não”, esticado de simpatia. A ex-rival sentiu um hálito de boa-fé tão puro, mas tão puro, que se desguarneceu todinha. E, dona Lêda, que não guarda mágoa nem ofensa, puxou o convite pra um café quentinho da hora. Prosearam, se abraçaram, “se riram”, e até caçoaram do carcará. Dizem que a outra botou admiração na jovialidade de Ledinha e, inclusive, duvidou de sua idade! Terá Lêda improvisado um cantin?


E assim, foram-se dois casamentos, a coleção do Elvis Presley, 576 maços de Hollywood, um Cavalo de Aço, três LP's “furados” do Julio Iglesias e uma ruma de garrafas com o rótulo do pirata com o papagaio no ombro. Ficaram os filhos. Diz Lêda, que a sorte que não teve no amor, Deus compensou em triplo com esses aí. Sua receita de educação não teve mistério. Com a mesma simplicidade de plantar batatas em terra fértil, ofereceu como solo sua alma digna. Pra regar, encharcou de amor e não economizou carinho. E pronto! Brotaram pessoas de bom caráter, responsáveis, sem vícios e, principalmente, filhos amorosos. Dos seis, nenhum, unzim que seja, enveredou pra o mal caminho. Lêdinha se rasga de orgulho. Pra ela, não tem no mundo todinho, filhos melhores, mais lindos que os dela.


Nas tardes de sábado, chova ou faça sol, enchem o alpendre de sua casa toda a prole, mais os netos que ela adora, a nora e os genros “puxa-saco” e de “sacos-puxados” por ela. E nunca se viu família mais unida, mais companheira, mais virtuosa, mais feliz, que a família que Ledinha, sabiamente, ergueu firme como rocha.


E quanto aos ex-maridos, quando as filhas vão para o “Brejo”, o Brejo Santo, visitar o pai, Ledinha se enfia no carro. E lá chegando “se amostra” com seus cabelos pintados e os peitos turbinados. Se agarra com JLG, andam “de braço” e recordam as doidices. Ele exibe a fotografia desbotada na carteira e repete: “pe-pela lei de Deus, vo-você ainda é-é minha mulher, até que a morte nos sepa-pare”. E o Caíto, "mei-caidão", passados esses anos, não mais lembra tanto o “Rulio” como outrora. Mas, “todora” tá na casa de Ledinha inventando uma coisa pra fazer. Prestexto não falta. E precisa? Todo mundo quer respirar o ar de Ledinha, provar o seu café, ouvir o seu conselho, sentir o seu cafuné, rir da sua piada, se alegrar da sua alegria. Qualquer um que ser seu filho, seu parente, seu pretendente, seu vizinho, seu qualquer coisa, contanto que tenha um cantim em seu coração sem tamanho.