Nossa casa tinha um quintal bem grande, chão de areia, onde passávamos as tardes brincando. Lembro que costumávamos matar formigas que se enfileiravam a caminho do formigueiro. Depois, as colocávamos em caixas de fósforos pra enterrar no “cemitério” sob o pé de siriguela (que tinha as folhas coloridas com tinta guache), com direito a cruz de palitos e reza. Uma brincadeira meio fúnebre, talvez.

Eu observava que elas, as formigas, pareciam se comunicar umas com as outras, algo como “negrada, recuem que os monstros enormes – nós – estão exterminando a nossa tropa!”. Bem, eu só sei que elas davam uma cabeçada (como se cochichassem no ouvido) e mudavam o rumo, apressadinhas. Às vezes, antes de dormir, eu ficava pensando se as sobreviventes estavam deprimidas com a morte de seus parentes.

Nessa época nem tinham nascido, ainda, nossos irmãos mais novos, Adriano e Bárbara. Eu e minhas três irmãs fazíamos tudo na mais absoluta cumplicidade. Na flor dos meus onze anos, eu era a mais velha da prole. As gêmeas estavam com oito, e a caçula com apenas seis.

A goiabeira era dividida em quatro partes por uma demarcação milimétrica em “xis” no solo. Cada uma tinha o seu “pedaço” e ninguém podia tirar goiaba do galho alheio. A gente sabia de cor quantas e onde estavam as goiabas verdes. Fiscalizávamos uma a uma todos os dias até amadurecerem. Não havia perigo de alguém pegar umazinha sem a outra perceber. E, quando isso acontecia a confusão era feia.

As gêmeas eram as mais sonsas. Negavam de pés juntos, sem a língua tremer. Eu sempre desconfiava delas quando uma goiaba sumia porque a Paulinha era muito inocentezinha e, além do mais, ela preferia mesmo era raspar as paredes e comer barro. Eu, era metida a santinha. Minha melhor amiga, Marivone, sonhava em ser freira e enchia o seu caderno, as árvores do pátio do colégio e portas do banheiro feminino de corações com a frase “Marivone e Deus”. Nós duas passávamos toda a hora do recreio na capela, rezando de joelhos. Parece mentira. Mas eu juro. Jurar é pecado?

Mas, quando a gente brincava de casinha, eu sempre gostava de ser a mãe e dar as ordens. Obrigava as filhas a comerem verdura imaginária e botava todo mundo de castigo. Ao terminar a brincadeira, minhas irmãs faziam uma “cadeirinha” com os braços pra eu sentar, enquanto a gente cantava bem alto: “e foi assim que a nossa história aconteceeeeeeeu!!!” - e o “eeeeu” ecoava até a garganta não aguentar – como a música que encerrava o nosso disco de estorinha do Robin Hood.

Como todas as atividades, o banho também era coletivo. A gente fazia muita algazarra no banheiro. Um dia, inventamos uma brincadeira de apertar o sabonete entre as mãos até ele escapulir. A irmã do lado tinha que aparar e ir passando pra outra da roda, e assim o sabonete circulava de mão em mão. Se alguém deixasse cair, tinha que pagar a prenda costumeira de “comer barata assada”. Embora fosse uma prenda faz-de-conta, era incrível como a gente ficava nervosa e excitada só de pensar em derrubar o sabonete.

Então, depois de todas já terem “comido barata assada” várias vezes, o sabonete, por fim, escapuliu como num salto de trampolim, justo pra dentro do vaso sanitário. O Phebo novinho, aberto naquela semana, estava lá no fundo sob o nosso xixi. A mamãe ficaria histérica se soubesse. Dessa vez, a prenda da minha irmã foi tirar o sabonete de onde ela deixou cair. Correu molhada até a cozinha e voltou com um papeiro de ágata na mão. Dá pra imaginar o resto, né?

Horas mais tarde, estávamos brincando na casa da vizinha, quando ouvimos a mamãe gritar:

- Ohw Cristina, Cristiane, Cristiene e Ana Paula! - essa última escapou por pouco de o papai registrá-la com o nome de Cristineide, não fosse a mamãe ter surtado.

Dez minutos depois, sempre na mesma ordem – a do nascimento:

- Ohw Cristina, Cristiane, Cristiene e Ana Paula! Venham jantar agora!

A São Braz, nesse ano, tinha acabado de lançar a canjiquinha, e a mamãe enchia a despensa da tal “Canjiquinha São Braz” porque a gente adorava. O menu se repetia, pelo menos, cinco vezes por semana.

E, pela derradeira vez, a mamãe se esgoelou:

- Ohw Cristiiiiina, Cristiaaaane, Cristieeene e Aaaana Paula! Vão obedecer não, é? Pois eu tô doidinha pra dar palmada em menina teimosa! Veeeenham!

E lá vem a gente correndo, uma atrás da outra, mãozinhas para trás, protegendo as nádegas. Geralmente, a gente passava tão rápido que só a última levava a palmada. Ninguém queria ficar no fim da fila (parecia olimpíada na prova dos cinquenta metros).

- Mas, será o Benedito? A canjiquinha tá esfriando na mesa faz tempo! Diacho! Porque que vocês me tiram a paciência! Teimosinhas! Não ouviram eu chamar? E tratem de comer tudinho, pois eu vou guardar a palmada pra quem não raspar o prato!

Ela dizia aquilo porque sabia que a gente amava canjiquinha. Era mais fácil a gente repetir que deixar sobrar. Mas, ninguém sabia o que nos esperava! Corremos pra cozinha e sentamos “the flash” no intuito de proteger as nossas bundas.

Tomamos um susto e nos entreolhamos com a cumplicidade peculiar. Lá estava! O papeiro de ágata, o dito cujo que salvou o Phebo, cheio de canjiquinha e canela. Ficamos sem ação. E agora? Contar a verdade, jamais! Comer aquilo, nem pensar!

- Vocês são muito teimosas, minhas filhas! A mamãe não gosta de brigar, não! Mas vocês me tiram do sério. Pronto! Agora comam a canjiquinha que a mamãe fez, comam, comam...

- Mas, ma-mamãe... – gaguejou a autora do crime no banheiro - é que a gente tá sem fo-fome.

- O quê? De jeito nenhum! Vão comer sim. Vocês não são loucas por Canjiquinha São Braz? Pois eu não saio daqui enquanto não ver esse papeiro raspadinho. Vamos ver quem acaba primeiro. Vamos, vamos!


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12 comentários:

    Lêda Bezerra de Menezes disse...

    Ai Cris. vc foi pescar essa longe hem? Essa história da canjiquinha já me rendeu risadas e remorso, rsrs, como adivinhar que vcs haviam contaminado esse papeiro? So sei que cresceram robustas, sadias e lindas! Terá sido pelo conteúdo vitamínico que havia naquela panelinha? A verdade é que depois daquele dia, nunca mais encontrei a dita cuja.

  1. ... on 8 de agosto de 2010 às 16:52  
  2. Cris Grangeiro disse...

    Mame! Nós demos fim naquele papeiro naquela mesma noite, rsrs! Jogamos para o terreno baldio nos fundos do nosso quintal. A gente aprontou um bocado, é verdade. E tivemos uma infância, muito, muito feliz!

  3. ... on 8 de agosto de 2010 às 18:43  
  4. Anônimo disse...

    Cris, amei! Como sempre vc me enchendo de momentos assim. Sua histórias são muito boas. Consigo imaginar cada momento vivido por vcs.
    Beijossssss! Valéria

  5. ... on 9 de agosto de 2010 às 05:41  
  6. Anônimo disse...

    Ahhhh, adorei a fotinha!!!!!!!!!

  7. ... on 9 de agosto de 2010 às 05:42  
  8. Anônimo disse...

    Amigaaa!! Amei!! Ri demais, viu? Que tal um com aqueles ladrões que costumavam e adoravam visitar tua casa? rsrsrsr Bjssssss

    Graça Gomes

  9. ... on 9 de agosto de 2010 às 09:09  
  10. Unknown disse...

    Mana também não precisava entregar que eu gostava de comer barro né! rsrs

  11. ... on 9 de agosto de 2010 às 10:42  
  12. Anônimo disse...

    Cristina,até mesmo as histórias mais comprometedoras de outrora viram incríveis contadas por ti.Adorei ler!embora já soubesse dela nem parecia ,pois a emoção para o desfecho é grande.
    Um beijão,Daniela(prima),professora Fortaleza

  13. ... on 10 de agosto de 2010 às 14:04  
  14. Anônimo disse...

    Cristina, ler os seus escritos, contitui hoje um dos meus hobes favoritos, parodiando meu filho show de bola!
    Parabens pelo seu excelente trabalho! este sobre a familia é bastante delicioso de ler!
    Abraços.
    César Pinheiro, auditor Fiscal, Fortaleza-CE.

  15. ... on 10 de agosto de 2010 às 18:53  
  16. Anônimo disse...

    Mana estou me vendo na cena! kkkkkkkkkk
    Ninguém queria comer da canjiquinha... Mas a mamãe ficou observando e não teve como enganar. Parece que estou vendo o papeiro com as quatro colheres enfiadas dentro! kkkkkkkkk
    Velhos tempos que não voltam mais...
    E a goiabeira, ai de quem comesse a goiaba do galho alheio!!
    Amei a história!! Saudades dos velhos tempos!
    Parabéns Mana!!
    Beijos...
    Cristiene Menezes Grangeiro

  17. ... on 11 de agosto de 2010 às 06:26  
  18. disse...

    Óóóóiii Crisinha!
    Quem mandou ser menina danada?
    Canjiquinha com um toque de xixi.
    Hahaha

    Adorei! Ri demais!
    Já te adicionei na minha lista de leitura.

    Beeeijo

  19. ... on 11 de agosto de 2010 às 20:20  
  20. Anônimo disse...

    ai, meu deus! que situação...
    hahahah

    é cada uma que a gente inventa pra se livrar de apanhar...! hahaha

    muito boa, cris, amei!

    beeijo!

  21. ... on 4 de outubro de 2010 às 21:46  
  22. Cris Grangeiro disse...

    Uma amiga de infância tentou postar: (0brigada, Sil)

    "Oi Cris, td bem? Dei uma olhada no seu blog Cris e fiquei tão emocionada com o que cv escreveu no relato da CANJIQUINHA...me fez lembrar de momentos tao felizes que vivi naquela casa, naquele quintal, com uma riqueza de detalhes imprecionante, q so quem viveu é capaz de lembrar.Sabe Cris, é impossivel eu reelembrar da minha infância sem vim esses momentos vividos ao lado das meninas naquela casa., fui uma privilegiada com as goiabeiras, pois tinha o livre acesso nos galhos de todas, era amiga de todas e acabava comendo de todos os lados,rsrssrrsrs também tomei muitos banhos naquele banheiro, que era enorme, maior q a sala da minha casa..e aquela garagem..há como brincamos, como fomos felizes quando crianças...pena hoje as crianças nao terem mais aqueles espaços, e calor humano q existia...Agradeço a Deus por ter tido uma infância tão feliz ao lado de seres humanos tão maravilhosos q sempre me trataram como um membro da família, Ledinha, Criastiane, Cristiene, Paula e vc Cris estarão sempre em minhas lembranças, por toda a vida....Bjs no seu coração. Silvana."

  23. ... on 11 de outubro de 2010 às 17:59