Tenho sonhos de um futuro simples e pacato, oposto à minha vida urbana. Avesso do meu presente. E entrever esse amanhã me dá insights de felicidade. Ao mesmo tempo, medo. De não me acostumar. De sentir tédio. Mas, por que o desejo tanto? Esse lugar. Onde não existe congestionamento, poluição, estresse, a futilidade e o supérfluo. O tal futuro. Vejo-o, como se já o tivesse vivido. Sinto-o como se me fosse tão próximo. Quero-o, como se o houvesse perdido.

Imagino. Uma casa na Serra, em perfeita harmonia com a natureza e o frio. O despertar cedinho, todos os dias. Quando os primeiros raios de sol se enfiam nas frestas, em fachos de fumaça com purpurina. Lá, me espreguiço sem pressa, ouvindo o cantarolar dos passarinhos. Dou uns gemidos, falo com a voz fina, e entre pausas pra implorar uma cosquinha, conto o meu sonho, sem pé e sem cabeça. Rogo pra não ser interrompida (senão esqueço-o). Floreio pra ficar interessante.

Depois, passo um café moído, desses que empesta a casa com o seu cheirinho. Sobre a mesa, toalha xadrez e a flor no vaso. Flor de verdade, do meu bucólico jardim. Uma janela bem grande na cozinha, com cortina de babadinho. Só pra ver a laranjeira carregada, a horta, e se o cacho de banana está mais maduro.

Uma tapioca com manteiga, enroladinha, feito um charuto. Vou molhar no café - alguém repara? Não, se em xícaras de porcelana, com rosinhas no detalhe. Ao sabor do grão forte, devaneio, faço planos pro almoço. Um risoto de camarão, talvez. Ele pede espaguete à carbonara, com bastante manjericão.

Xícaras na pia, pé na estradinha. Tem flor de mato nas coxias. Sinto o odor da terra úmida, dou bom dia pra vizinha. Proseamos sobre os filhos (umas corujices). E lembramos os velhos tempos, com aliviado saudosismo. A vida corrida, a rotina de trabalho, os filmes devolvidos sem assistir nos finais-de-semana relâmpago. Quando não se podia escolher ficar mais tempo na cama. O tempo que a gente não tinha tempo (de viver).

De volta, chupamos laranjas no alpendre à sombra do ipê que desfolha um tapete amarelo sobre a grama, que eu não deixo varrer. Ele fala de política, discursa sobre o mercado financeiro. Eu cobro a revisão do meu texto e me convido a escrever. Na mesa defronte à janela, acima do monitor, vejo ao longe a pequena cabana que margeia a linha tênue azul. E os pontos escuros que se mexem. Parecem galinhas.

Eu escrevo. Ele estuda uma trava de baixa. Dá vontade de tomar um licor. E já é hora de cozer uma comidinha. Vou direto ao espaguete, ele finge que prefere o risoto. Eu duvido. Risoto, espaguete, risoto, espaguete. Espaguete! Dissimulo predileção. Ele diz que no fundo, queria o risoto. E eu nem acredito.

Passo o bacon com a cebola no azeite que borbulha na panela de pedra-sabão. Ele põe minha taça de vinho e pede muito macarrão. Eu nego (rende às pampas depois de cozido). Ele teima, e enfia mais na água fervente, enquanto colho um raminho de manjericão. Eu resmungo e ele sai de fininho. Vai sobrar e eu detesto requentado. Assim, vão-se uma manhã, um soninho depois do almoço, uma massagem, outras chantagens e uns CDs clássico/instrumental. Baixinho. E um bocado de teimosias.

Mais um cafezinho (com biscoito caseiro) e voltamos pro nosso cantinho na janela. Ele ainda estuda a mesma trava. E estou a reescrever o que já estava escrito. Maldigo meu perfeccionismo. O sol beija a montanha, e o traço azul do rio nem mais se vê. E antes que o céu arroxeie, um passeio pelo quintal. Vemos o que brotou e o que desabrochou. O que amadureceu e o que não foi pra frente. Regamos o jardim. Completamos a água do beija-flor. Babo com a flor que abriu. Assusto-me com um inseto voador. Grito, rio, tá frio. Ele acende a lareira e eu corro pro chuveiro quentinho.

Vai reinar arroz com ovo estrelado pro jantar (de novo). Arroz exalando cheiro de alho, com requeijão e salsinha picada em pedaços microscópicos. Queijo assado crocante, e ovos de gema corada, da galinha corredora de terreiro, da dona Mazé da mercearia. Nada de perder o jornal na tevê, e até me viciei na novela. Uma leitura pra chamar o soninho. Mario Vargas Llosa, se ainda restar algum que eu não li. Por fim, o derradeiro bocejo e uma prece a Deus. E assim, mais um dia vi-vi-do. E a vida já não passa por nós. Em meio a cumplicidades, chamegos e teimosias, somos crianças felizes!
...
Foto divulgação.


This entry was posted on segunda-feira, outubro 12, 2009 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.

18 comentários:

    Anônimo disse...

    Sua literatura é tão perfeita, que acabei entrando de fato no "seu" mundo. Parabéns!!! Você é demaisss!!!
    Graça Gomes

  1. ... on 12 de outubro de 2009 às 16:55  
  2. Unknown disse...

    Mana amei seu texto! Quero ser sua vizinha da casa

  3. ... on 12 de outubro de 2009 às 19:43  
  4. Unknown disse...

    Mana quero ter uma casa bem coladinha com a sua na serra e curtir junto com vc esse mundo encantador que vc conseguiu passar nesse texto! Bjuss
    Te amo!
    Ana Paula Grangeiro.

  5. ... on 12 de outubro de 2009 às 19:45  
  6. dea disse...

    Cris, que linda forma de viver, que delícia, poesia pura...Deu-me vontade de encontrar vc querida Cris e nossas amiguinhas para conversarmos sobre coisas boas assim e de nossoa sonhos, hummm...senti o cheiro do café moído, cheiro do mato molhado e do manjericão nem se fala! Essa de encerrar a noite com um ovo estrelado e na novela para depois se aconchegar com o amado: também gosto desta idéia de futuro amiga!

    Nossa amiga poeta!

    Que voce continue com pensamentos criativos e lindos assim para sempre enchendo nossos corações de felicidade pura.

    beijo,

    Deinha

  7. ... on 13 de outubro de 2009 às 06:14  
  8. Anônimo disse...

    Mana, não esqueça de me convidar para passar o final de semana nessa sua fazenda viu...
    Nada como uma vida tranquila e sem pressa...
    Espero na minha velhice ter oportunidade de vivenciar isso.
    Adorei o texto!!
    Já estou me sentindo nessa casa na colina!!
    Te Amo!!
    Cristiene Menezes
    Mil Beijos...

  9. ... on 13 de outubro de 2009 às 07:40  
  10. NELSON GONÇALVES disse...

    Aê garota! Temos mesmo é que sonhar os sonhos que nos agradam a alma...É possível realizar.
    Particularmente acho bucólico demais para o bicho urbanóide que me tornei, mas lá no mato onde nasci a vida tinha esse rítmo. Como era menino e ainda não conhecia as maldades do mundo, mais parecia o paraíso. Acredite, ele existe!
    Bjs e parabéns pelos sentimentos nobres.

  11. ... on 13 de outubro de 2009 às 08:40  
  12. Anônimo disse...

    Os Detalhes, o sonho, tudo é perfeito. Vamos continuar falando com Deus, quem sabe amanhã, tudo isso será realidade. Eu também quero ser seu vizinho.

    Paulo Temóteo

  13. ... on 13 de outubro de 2009 às 11:18  
  14. Anônimo disse...

    Cris, que delícia esse texto,você me fez viajar com os detalhes que expressou com tanta sensibilidade.
    Parabéns, amiga e continua com Deus.
    Roseane Cândido.

  15. ... on 13 de outubro de 2009 às 13:36  
  16. Miranda disse...

    Tá muito bonito seu blog Cristina parabéns, se me der licença de pegar carona no seu sonho eu vou adicionar um cachorro, bem pé duro msm, pedigree zero pra me acompanhar nas caminhadas e dormir embaixo da minha rede, bj do ex-presidente, rs

  17. ... on 13 de outubro de 2009 às 19:05  
  18. Anônimo disse...

    Cris, adoraria ser convida para passar um final de semana nesta casa de sonhos.
    O café e a tapioca fica por minha conta enquanto vc continua escrevendo mavilhosamente bem!!
    Eu tb (como disse o Nelson) quando criança vivi em uma casa lá no meio do mato (na Bahia é claro...), não tão sofisticada como a sua, porém,..cheia de sonhos!!
    Como não consigo voltar ao passado vou ficar sonhando com sua linda casa na momtanha..
    Continue escrevendo que vc vai longe!!
    Tenho orgulho de ser amiga desta grande escritora!!
    Saudades.
    Biejokasss
    Janete - SP

  19. ... on 14 de outubro de 2009 às 05:19  
  20. Lêda Bezerra de Menezes disse...

    LÊDA MARIA DISSE:

    O que dizer depois de tantos elogios já escritos? Procurar num dicionário as palavras mais esdrúxulas e postar aqui? Não. Palavras esdrúxulas, não fariam sentido aqui porque não traduziriam a verdadeira essência do seu eu, que é tão fácil e compreensível de entender. Mas posso acrescentar que, além de escritora fantástica, de profissional competente, de caráter embatível, você é a minha filha! e isso faz a diferênça e isso faz o meu orgulho. Me senti dentro dessa estória e me vi acordando mais cedo que você, e o cheiro do café gostoso fez você levantar e ainda me ver colocar a flor no jarro em cima da mesa com toalha xadrez. Me fiz personagem do seu sonho, e senti falta do fogãozinho a lenha lá no canto do alpendre de traz, pois é nele que quero cozinhar nos fins de semana naqueles panelões de barro. Não será aquela mesa de toalha xadrez, mas nas bancadas de cimento que arrodeia toda casa, o resto da família de pratos de ágata nas mãos a saborear aquela galinha caipira com um pirãozinho escaldado, ou uma carneirada com gerimum. E todos sem cerimônia a voltar lá nas panelas agora postas em cima daquela enorme mesa de madeira maçissa que fica no alpendre pra esses dias de família reunida. Há filha, que seria de nós se não fossem os sonhos? Eles dão um significado a nossa vida, um motivo pra ir buscá-los. Como é bom quando da realização de um deles poder dizer: Era um sonho, hoje é REALIDADE! Sei que Deus vai me querer nesse futuro, pra que eu possa debruçar na janela enorme ao entardecer, e apoiada a minha bengala olhar você e Serginho regando as plantas, enquanto por traz da serra o sol espalha seus últimos raios ofuscantes se despedindo de mais um dia. As seis horas, antes daquele arroz com salsinha e ovo frito, uma oração agradecendo a Deus por nos ter presenteado com o previlégio de ter-mos uma família feliz, unida e abençoada.

    Te amo muito.

    (Cris desculpa por ter-me feito personagem de tua linda estória, mas como minha filha, não poderias ter sonhos diferentes dos meus, sei que estou em teu coração, assim como você está no meu, então...quem sabe estarei mesmo lá contigo?)

  21. ... on 14 de outubro de 2009 às 09:49  
  22. Anônimo disse...

    "Onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais..."
    Parabéns, Cristina!
    > Ricardo Kelmer
    blogdokelmer.wordpress.com

  23. ... on 14 de outubro de 2009 às 12:32  
  24. Cris Grangeiro disse...

    Mame querida... Suas palavras são gentis, tocam o coração. Faz a todos compreender de quem herdei o gosto pela literatura. E, tenha certeza: essa história não seria tão feliz sem você por perto, não só para preparar a tapioca (bem melhor que a minha), mas para encher a nossa vida com a alegria, a leveza e o bom humor que a tua presença tão fielmente traz, sempre! Vou providenciar o fogão à lenha, pois teremos muitos almoços em família! Te amo muito!

  25. ... on 14 de outubro de 2009 às 19:22  
  26. Simone Teixeira disse...

    Cris, estou en-can-ta-da com suas palavras amiga!!! Não poderia ser diferente, com tanta perfeição em detalhes e lindo português, desse que a gente sente saudade hoje em dia. Seu texto me emocionou por demais, parece até que sonhou o meu sonho, com todos esses detalhes, tim-tim por tim-tim. Por vezes também não sei se me acostumaria, mas esses sonhos teimam em me acompanhar.
    Amiga quero que você me faça um grande favor:NUNCA MAIS PARE DE ESCREVER! Você é mestre em palavras, uma verdadeira poeta que enobrece a nossa língua. Me orgulho em ter uma amiga como você!Não bastasse as demais qualidades hein? Apesar de não sermos tão próximas, sempre senti uma afinidade enorme por você.
    Dia desses encontrei sua linda Manu no supermercado e foi impossível não lembrar de você. Ela é linda e simpática como a mãe. Recebeu meu beijo que mandei por ela?
    Um cheiro e uma piscadela (daquelas, ;) lembra?) pra você com muito carinho.

  27. ... on 15 de outubro de 2009 às 16:00  
  28. Paula Izabela disse...

    Não vou mais me convidar pq sua casa já está lotada de amigos! Nem se preocupe q não sobrará macarrão. kkkkkkkk. E já q é p entrar no seu sonho, quero uns CDs instrumentais emprestados. Huahuaha.

    Amiga, uma das lembranças mais fortes q tenho suas é do dia em q foi me buscar p almoçarmos na Clarinha. No caminho, presas num engarrafamento no Coco, vc me falava justamente desse sonho e aqui está ele, melhorado. Não sei se lembra disso...

    Que Deus te ilumine sempre!

    Beijos no coração!

  29. ... on 16 de outubro de 2009 às 04:01  
  30. Anônimo disse...

    Cris,
    Super BACANA.......Tudo o que foi escrito por você FORTALECE nossas almas e nossos desejos.
    Merece ser lido e relido em quantidade de vezes...

    Um forte abraço.

    Cícero Braga

  31. ... on 16 de outubro de 2009 às 08:28  
  32. Valeria Lopes disse...

    Cris...
    Simplesmente adorei seu texto. Como muitos aqui, imaginei a cena... Até entrei na fantasia e me ví tomando aquela xícara de chocolate quente que o Mario teima em reclamar! kkkkk
    Quero expressar a satisfacão que tenho em fazer parte de alguns bons momentos com você e Sérgio.
    Acredito sinceramente que esta casa na serra com horta e jardim, já está deixando de ser um sonho e logo logo se tornará realidade.
    Parabéns pelo texto belíssimo!!!!
    Beijo bem grandão!!!

  33. ... on 17 de outubro de 2009 às 11:06  
  34. Anônimo disse...

    Crisinha,

    Quem sou eu pra te elogiar depois de tantos belíssimos e merecidos elogios. Só posso dizer o que sempre digo a você: Quero ser Cris Grangeiro quando crescer...

    eu curto muuuuuuito seus escritos!!!
    um cheiro

    Suelen Paz

  35. ... on 18 de outubro de 2009 às 18:08